O Provimento nº 63 de 14 de novembro de 2017, emitido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituiu a obrigatoriedade da inclusão do número de CPF nas certidões de nascimento, casamento e óbito no Brasil. Essa medida visa modernizar e integrar os registros civis ao sistema de identificação fiscal, facilitando o acesso a serviços públicos e privados, como abertura de contas bancárias, participação em programas sociais e outros benefícios. No entanto, a obrigatoriedade do CPF nas certidões de nascimento também traz implicações indesejadas. Embora a intenção seja facilitar a identificação e o acesso a serviços, a inclusão do CPF desde o nascimento pode ser utilizada de forma indevida, como a inclusão de crianças no quadro societário de empresas.
No Brasil, a legislação vigente admite que menores de idade possam figurar como sócios de pessoas jurídicas. Essa possibilidade, embora juridicamente viável, abre espaço para situações que, em muitos casos, se revelam prejudiciais à vida e ao desenvolvimento da criança.
A utilização de crianças como sócias muitas vezes não decorre de um planejamento patrimonial responsável, mas sim de estratégias questionáveis adotadas por adultos. É comum que empresas sejam constituídas em nome de filhos menores com o objetivo de ocultar patrimônio, evitar constrições judiciais ou mesmo reduzir encargos tributários.
As consequências dessa prática podem ser graves. Crianças passam a constar como responsáveis legais em registros empresariais, sujeitando-se a repercussões fiscais, societárias e até criminais que, em tese, não guardam qualquer relação com sua realidade de vida.
Além disso, tais registros podem interferir em sua autonomia futura, gerando entraves em operações patrimoniais, em sua reputação empresarial e, em casos mais extremos, em sua inserção no mercado de trabalho e crédito.
Do ponto de vista jurídico, embora a lei autorize a participação de incapazes em sociedades empresariais, tal possibilidade deve ser interpretada com cautela. O interesse da criança e do adolescente deve sempre prevalecer, conforme estabelece o princípio da proteção integral consagrado no art. 227 da Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em outras palavras, não é admissível que a vulnerabilidade da infância seja instrumentalizada para atender a finalidades econômicas ou estratégias de blindagem patrimonial dos pais.
O documentário One in Fifty, produzido pela LSEG Risk Intelligence, traz à tona a história de Renata Furst Galvão, brasileira, que teve sua identidade roubada aos seis anos de idade e utilizada para acumular mais de um milhão de reais em dívidas fraudulentas. Esse caso ilustra como crianças são vulneráveis ao roubo de identidade, frequentemente realizado por seus responsáveis legais ou por familiares próximos. Renata compartilhou sua experiência em uma entrevista para o podcast Financial Crime Matters, destacando que sua história não é única, mas sim representativa de uma crise global pouco discutida.
Nesse cenário, a atuação responsável de profissionais do Direito mostra-se indispensável. A constituição de empresas em nome de menores deve ser analisada à luz não apenas da legalidade formal, mas também da legitimidade e da proteção do melhor interesse da criança. Cabe, portanto, orientar famílias e responsáveis sobre os limites dessa prática e sobre alternativas jurídicas mais adequadas para a gestão e a transmissão patrimonial.
É fundamental que práticas como essa sejam analisadas à luz dos princípios de proteção integral e prioridade absoluta dos direitos da criança, conforme estabelecido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
A legislação brasileira deve ser revista para garantir que o melhor interesse da criança seja sempre priorizado, evitando que sua identidade seja explorada para fins alheios ao seu desenvolvimento e bem-estar.
Por Michelle Maul Wuerges | Data de publicação 01/10/2025.

