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A Tragédia Silenciosa das Apostas Esportivas e a Interdição Civil como Resposta Jurídica à Ludopatia.

O Brasil vive atualmente um contexto alarmante de normalização e estímulo à prática do jogo por meio das chamadas “bets” – casas de apostas esportivas que operam em larga escala, sobretudo de forma digital. Estas empresas, muitas delas sediadas no exterior e operando mediante brechas ou ausência de regulamentação efetiva, têm se infiltrado profundamente no imaginário popular através de estratégias de marketing que envolvem personalidades midiáticas, influenciadores digitais e, sobretudo, clubes de futebol de grande projeção nacional.

A situação revela-se ainda mais grave ao se constatar que tais plataformas fomentam, de maneira sistêmica, um ciclo de ilusão e dependência psicológica que compromete a autodeterminação de milhares de brasileiros. A prática de apostas não se apresenta como um simples entretenimento ocasional, mas sim como um modelo de negócio estruturado sobre a exploração da vulnerabilidade psíquica de seus usuários, estimulados continuamente à repetição da conduta mediante promessas de ganhos fáceis e imediatos.

Há que se considerar também o papel deletério desempenhado pelos chamados influenciadores digitais, que, muitas vezes sem qualquer responsabilidade ética, promovem tais “bets” a públicos vulneráveis — adolescentes, jovens adultos e pessoas em situação de precariedade financeira. A associação entre figuras de referência social e plataformas de jogo mascara os riscos envolvidos, induzindo uma falsa percepção de controle e segurança. E ainda, a conivência de clubes de futebol, cuja imagem institucional é utilizada como chancela de credibilidade, agrava ainda mais o quadro.

O ordenamento jurídico brasileiro, conquanto tenha historicamente proibido os jogos de azar (Decreto-Lei n.º 3.688/1941, art. 50), vem assistindo a um afrouxamento desta vedação mediante interpretações liberais e iniciativas legislativas de setores que se beneficiam desse mal. Em que pese a tentativa de regulação do setor, o vácuo normativo e fiscalizatório ainda é notório, o que favorece a atuação predatória de operadores de apostas em detrimento da saúde pública, especialmente da saúde mental.

Não se trata apenas de um problema de política econômica ou sanitária. Os impactos da ludopatia — o transtorno do jogo patológico — são vastos, e encontram repercussão também no âmbito do Direito Civil. O jogador compulsivo pode comprometer substancialmente seu patrimônio e o de sua família, alienando bens, contraindo dívidas desproporcionais, praticando atos negociais sem discernimento adequado e colocando em risco sua subsistência e a de seus dependentes.

Neste ponto, revela-se pertinente a análise da figura do pródigo, prevista no art. 4º, inciso IV, do Código Civil. Embora tradicionalmente associada à pessoa que, por liberalidade excessiva, dissipa seu patrimônio, a doutrina e a jurisprudência têm admitido a extensão do conceito para abranger hipóteses de compulsão que comprometam a administração racional dos bens. A ludopatia, quando diagnosticada e reiteradamente demonstrada, é apta a justificar a interdição da pessoa com fundamento na prodigalidade contemporânea, voltada à proteção da família, da coletividade e do próprio interditando.

A interdição do pródigo visa impedir a prática de atos que, embora juridicamente válidos em abstrato, sejam social e economicamente desastrosos em concreto. Trata-se de mecanismo protetivo que, longe de ofender a dignidade da pessoa humana, a preserva contra si mesma, quando esta se encontre privada da capacidade crítica necessária à preservação de seu mínimo existencial e de sua autonomia patrimonial.

Assim, é imperioso que o sistema jurídico reaja com proporcionalidade e coerência, mas se o Estado, por meio de seus órgãos, se mostra lento ou omisso na regulação eficaz do setor, deve o Direito Privado, por sua via clássica e protetiva, atuar por meio de institutos como a curatela e a interdição, a fim de conter os danos patrimoniais e psíquicos que a ludopatia pode causar.

Por Michelle Maul Wuerges | Data de publicação 01/06/2025

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