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Posso deserdar um filho por abandono afetivo?

A frase “vou te deserdar” dita muitas vezes em tom de brincadeira por um pai a um filho, em casos de ausência de atenção e cuidados pelos filhos, está próxima de se tornar uma possibilidade.

A discussão jurídica acerca da matéria tem ganhado relevância nos últimos anos, considerando-se a liquidez das relações parentais.

Tem se mostrado cada vez mais comum casos de abandono paterno-filial, onde os pais, se ausentam da criação dos filhos e os filhos se afastam dos cuidados dos pais quando estes necessitam de cuidados na vida longeva.

Tal fenômeno é chamado de abandono afetivo, e consiste na omissão de cuidado, criação, assistência moral, psíquica e material que o pai e a mãe têm em relação ao filho menor ou que os filhos têm para com os genitores idosos.

O aumento da expectativa de vida é uma conquista individual e social, o que é uma boa notícia, porém, também tem seu lado negativo. Todos querem viver mais e viver bem, mas poucos querem cuidar daqueles que já alcançaram esta dádiva de ultrapassar a expectativa padrão de tempo de vida, momento em que surge o abandono afetivo inverso, que é quando os filhos se afastam dos cuidados para com os genitores idosos.

Tal abandono causa intenso sofrimento e impede que os genitores idosos usufruam deste período da vida com dignidade.

Mas diante deste cenário surge a questão, posso deserdar o filho que me abandonou afetivamente?

Como é sabido, os descendentes são herdeiros necessários. Esses herdeiros necessários têm sua parte na herança preservada por lei, a chamada legítima (50% do patrimônio), que não pode ser destinada a outras pessoas por testamento.

Contudo, existindo uma situação de abandono material e afetivo, seria correto que este filho, que abandonou o genitor em vida, venha a herdar o patrimônio deste?

Diante deste questionamento vem à mente o instituto da deserdação, que é aplicado quando o autor da herança, mediante causas trazidas por lei, exclui um herdeiro necessário de sua quota parte em seu patrimônio após a morte. A deserdação é feita por testamento e é a única forma que tem o testador de afastar de sua sucessão os herdeiros necessários, descendentes e ascendentes.

Porém, apenas nos seguintes casos há possibilidade legal de retirada do sucessor como herdeiro necessário, quais sejam: atos contra a vida, honra ou liberdade de testar do titular do patrimônio bem como em caso de ofensa física, injúria grave, relações ilícitas com o cônjuge do falecido, desamparo do falecido em alienação mental ou grave enfermidade

Portanto, o chamado abandono afetivo não está entre as hipóteses taxativas elencadas pela lei que autorizam a exclusão do herdeiro necessário da herança, ao menos não por enquanto, pois já existe projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional (PL 4.229/2019) buscando incluir o abandono afetivo como causa de exclusão da herança.

Há quem defenda que a Constituição Federal permite que seja aplicado desde já o abandono afetivo como causa para afastar o direito do herdeiro necessário ao patrimônio do falecido com base na nova concepção de família que tem como alicerce o princípio da afetividade. No entanto, esse entendimento ainda é minoritário, apesar de estar ganhando seu espaço.

Por isso, o abandono afetivo deve ser analisado caso a caso e caracterizado no ambiente familiar levando-se em conta a necessidade física e afetiva dos entes familiares.

Sendo o afeto o cerne das relações familiares e a pedra angular que deveria permear toda a estrutura familiar, é natural que sua falta seja também motivo para a exclusão da herança. Assim como o afeto cria e alimenta as relações humanas, a falta dele deve justificar a vontade da retirada de um herdeiro do quadro sucessório.

No decorrer da vida tal abandono causa consequências, motivo pelo qual o não amparo no cotidiano deve sustentar a exclusão do herdeiro, evitando assim um futuro enriquecimento material por parte daquele que não soube dividir sentimentos nem proporcionar bem estar ao genitor em vida.

Portanto, o tema abandono afetivo ainda se encontra em análise subjetiva pelos Tribunais, não havendo um parâmetro legal que delimite sua aplicação e seus efeitos, porém, é possível constatarmos um caminhar da sociedade para sua inclusão, a fim de valorizar o direito do testador em excluir de sua sucessão aquele que não lhe prestou auxílio e afeto em vida.

Por Michelle Maul Wuerges | Data de publicação 01/11/2022

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